Palavra do Reitor
Fala-se que a história se repete. Atentar para ela, contudo, é uma forma de evitar sua repetição, particularmente no que tange aos descaminhos e malfadados eventos que moldam um povo. Digo isto à impressão que tive do livro de autoria de Bernardo José da Gama, intitulado “Informação sobre a capitania do Maranhão dada em 1813”, editado em 1872 por Francisco Adolfo de Varnhagen (Barão de Porto Seguro) na Áustria, e agora revisado e organizado por Luiz de Mello numa nova edição.
O autor dessa obra não era maranhense. Tratava-se de um recifense que aqui aportou pelos idos de 1808, para assumir o cargo de Juiz de Fora da Capitania do Maranhão. O espaço exíguo não me permite tecer considerações sobre esse personagem, cuja obra só chegou ao público porque o então Barão de Porto Seguro a localizou na Rua do Senhor dos Passos, no Rio de Janeiro, tendo-a adquirido de um mercador de objetos usados.
Com pouco mais de 30 páginas, o documento escrito há exatos 200 anos revela um trecho do passado do Maranhão e de São Luís em detalhes curiosos. O relato se sustenta a partir das observações argutas de Bernardo José da Gama, que inicia sua narrativa através do que podemos chamar de carta, dirigida ao Chanceler Antonio Roiz Veloso com uma espécie de desculpa por não possuir documentos que consubstanciem sua narrativa. Informa o remetente que a Capitania do Maranhão era composta de oito vilas: Alcântara, Aldeias Altas (as duas o autor julga serem as mais notáveis), Vinhais, Paço do Lumiar (“não têm mais do que choças de índios”), Icatu, Guimarães, Viana e Monção. Não havia estradas. A descrição acerca de São Luís mostra como a cidade era organizada à época: “... compõe-se de duas freguesias, as quais em soma contêm o número de dezoito mil habitantes de todas as cores, sendo de brancos só a décima parte; mas toda a força da população acha-se espalhada pelas fazendas (...) principalmente nas margens do dito Itapecuru, a quem deve toda a sua opulência”.
No olhar de Bernardo José da Gama, São Luís era uma “cidade fúnebre” e sua entrada possuía uma “vista escura e tosca”. Esse intelectual reclama ainda de subidas íngremes (“como são a rua dos Sapateiros, que sobe para a praça do Carmo, e todas que as que sobem da Praia Grande para a Praça da Sé”), da falta de muralhas ou de cais para anteparar as pancadas do mar e de outras importantes obras.
Embora houvesse três conventos na cidade (“Mercedários, Franciscanos e Carmelitas descalços”), o autor fala da inexistência de “hospitais de misericórdia, casa de expostos e nem obra pia de qualidade alguma”. Em relação a um médico que recebia quatrocentos mil réis anuais pagos pela Câmara para visitar as casas dos enfermos pobres, o escritor o qualifica como “ímpio”, uma vez que não fazia seu trabalho. O ilustre recifense ainda se admira da cidade não ter chafariz para que as embarcações se abastecessem de água (ele cita a Fonte das Pedras, onde só era possível chegar “com bastante incômodo”) e de também não ter pelourinho (“coisa incrível, posto que a Câmara tenha de rendimentos mais de treze mil cruzados anuais”).
Se a paisagem urbana revelava essa série de problemas, outra coisa não se poderia dizer dos serviços: “Não há um teatro ou divertimento público, que a sã política tanto recomenda”, evidencia o autor. Afirma também ter sido o primeiro a intentar a construção de um espaço para a diversão na São Luís da época, incluídos o terreno e o desenho do lugar, mas que “tudo ficou frustrado pelas conhecidas hostilidades de um muito grande general”. Quanto à educação, a situação não é diferente: "Não há escolas públicas e nem mesmo algum estabelecimento para o progresso do espírito humano".
Bernardo José da Gama informa outro importante registro histórico: em 1811, durante o governo interino, mandou fazer a descoberta do rio Grajaú, “por cuja comunicação se facilitou muito a descida dos gados dos Sertões Pastos Bons”. Revela ainda uma avançada preocupação ambiental acerca do modo de plantio praticado: "(...) todas elas a custa de matas virgens, que fazem derrubar e incendiar todos os anos". Por outro lado, reconhece a facilidade da caça e da pesca, o que justifica o ócio que atinge os moradores e até mesmo profissionais vindos da Europa, que rápido se adaptavam. Aqui, dedicavam-se a negócios escusos, sob o olhar complacente do Estado. A certa altura de sua missiva, chega a protestar acerca do fato de o povo ter se acostumado a exportar excelente matéria prima sem se importar em pagar caríssimo para importar produtos manufaturados. "Tudo se acha ali dois ou três séculos atrasados ao resto do Brasil", assegura.
Depois de detalhar os aspectos físicos da Capitania, o autor destaca itens religiosos e morais do povo: "Ali não há religião, nem consciência". Os mais pobres costumavam andar nus. Escravos e índios, tratados com castigos cruéis. O retrato acerca da personalidade dos moradores era desalentador: "Os habitantes (...) são de má fé e sempre propensos a sublevar-se e a promover desordens na administração dos governos (...); altivos e ao mesmo tempo sombrios e desconfiados, arrogantes e ao mesmo tempo tímidos e baixos, aduladores e ao mesmo tempo traidores: só temem e nada respeitam". Uma postura de bajulação ao general era comum entre o povo, que entendia ser necessária como forma de prevenção à vara da justiça. Entende o autor que esse hábito perverso era fruto da espécie de colonização a que esta terra foi submetida – serva de gente degredada e aventureira. Adverte o Chanceler que, por aqui, era costume os moradores urdirem intrigas entre ministros e governador para que, no meio da balbúrdia, pudessem tirar vantagem.
A análise da obra – passados 200 anos de sua primeira escrita ao modo de um relatório minucioso, e agora com a competente revisão de Luiz de Mello – é um libelo ainda vivo e com certeza requererá do leitor uma profunda indagação sobre o que nossa geração deseja legar para o Estado do Maranhão.
Doutor em Nefrologia, reitor da UFMA, membro do IHGM, ACM e AMC
Publicado em O Estado do Maranhão em 24/11/2013
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