Palavra do Reitor
Ao iniciar este texto, duas frases célebres me ocorrem: a história se repete como tragédia ou como farsa e um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la. A primeira é da lavra de Karl Marx, em seu livro “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” e a segunda é atribuída ao filósofo inglês, do século XVIII, Edmund Burke. Parece que se vive um momento em que as duas frases se atualizam. Porque a ignorância nos leva a (re)viver a história, repetindo-a na forma trágica e com seus tons enganosos. De novidade mesmo, só o perfil dos fatos.
A propósito, trato das notícias alvissareiras das primeiras pessoas imunizadas no mundo com a vacina contra a Covid-19. O que causa espécie é como a polêmica contemporânea pode ser comparada com a da Revolta da Vacina de 1904. Trata-se de um episódio que beira o bizarro, pois, com a grande quantidade de mortos e com os hospitais entrando em colapso, o jovem médico Oswaldo Cruz pediu ao Congresso que revalidasse a obrigatoriedade da vacina contra varíola. E, se digo revalidar, é porque, desde o século anterior, a vacinação era obrigatória, porém ninguém se importava com a lei e o governo não a fazia valer.
A solicitação de Cruz foi o mote para a politização no Congresso a que, de um lado, opunham-se militares, monarquistas, republicanos e radicais das forças operárias que desejavam depor o presidente Rodrigues Alves e, de outro lado, havia a crença do povo de que a vacina era feita com o líquido das pústulas de vacas doentes. O terreno era propício para todo tipo de teoria conspiratória, diante de uma lei draconiana que permitia a invasão das casas e a vacinação à força.
Num mar de muitas versões sobre a vacina, havia o desamparo dos pobres, as mortes em multidão, a ausência de coveiros nos cemitérios e os caixões deixados ao relento. Era tempo de caos estabelecido: 1904 – 2020, pouco mais de cem anos. Espanta-me hoje o debate ser, em natureza, exatamente o mesmo. Observem:
Naquela época, coube a Oswaldo Cruz, jovem médico, o papel de Dom Quixote, numa cruzada pela adoção de um protocolo de enfrentamento sanitário. No lugar dos imaginários moinhos de vento da literatura de Cervantes, Cruz se deparou com os reais moinhos de revoltas e resistências de toda sorte. Mas os visionários são, por natureza, indesistíveis. Mutatis mutandis, hoje estamos à mercê de uma sorte de teorias conspiratórias de vários matizes. Nunca estivemos tão carentes de homens realistas que, pés no chão e olhos no futuro, consigam guiar um imenso mar de cegos numa senda escura, cheia de vozes discordantes e abismos de ambos os lados.
Pertinente invocar ainda o cenário kafkiano de Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago, uma parábola moderna do nosso mundo tão convulsionado pela pandemia. Já escrevi sobre o assunto quando de uma jornada literária pela Academia Nacional de Medicina. Chamou-me a atenção a frase que emerge da obra: “Se decides não ver, cegarás”. A jornada dos personagens daquela obra, que se tornam cegos, é, por assim dizer, um caminho para enxergar de verdade.
Sim, este é o cenário: escuridão e cegueira, vozes conflitantes e conflituosas. O caos é o que os cientistas atravessam entre um abismo e outro. Mas enxergar, muitas vezes, nasce de uma decisão. Não à toa, nos Evangelhos, Jesus, antes de curar o cego, questionava-o sobre o que queria que lhe fosse feito. “Senhor, que eu veja”. Essa era a resposta. Um posicionamento de deixar certezas equivocadas e abraçar a verdade. Já se passaram mais de 2000 anos. Se hoje Jesus nos interrogasse de novo, eu penso que a nossa resposta deveria ser a mesma: que nós vejamos.
Que nós percebamos que a vacinação contra a Covid-19 já começou ao redor do mundo, a despeito daqueles que continuam se empenhando ferozmente em cercar esse dado de estórias fantasiosas e burlescas. Que nós não repitamos, em 2020, as mesmas cegas reações que ofuscaram o real entendimento que exigia coerência e respeito à vida, em 1904. Que nós entendamos, com sobriedade e realismo, as informações verídicas e necessárias, para que, mais uma vez, abracemos a ciência com fé em Deus.
Natalino Salgado Filho
Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.
Publicado em O Estado do MA, em 19/12/2020
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