Palavra do Reitor
De repente se tornou realidade aquilo que parecia distante. E mais: passou a ser inevitável. Num mundo em que a pandemia do coronavírus ainda reina, sem soluções à vista, os profissionais da Medicina tiveram que se adaptar à interação com o paciente mediada pelas máquinas. O que era elemento de filme futurista surgiu como medida imprescindível, uma vez que o contato humano passou a ser evitado, como forma de preservar a saúde e a vida de médico e paciente, o que limitou a tradição do atendimento presencial e deu lugar à exceção, o exercício da telemedicina.
Dados recentes dão conta de que a Covid-19 impulsionou a aplicação maciça de recursos na telemedicina ao redor do globo. Na França, foi contabilizado mais de um milhão de teleconsultas, em abril deste ano, um número estrondoso, quando verificamos que, na primeira semana de março, eram apenas dez mil.
Reino Unido, Estados Unidos e China evitaram o colapso do sistema de saúde por meio de atendimentos a distância. O Brasil não ficou indiferente a essa solução: aqui, o cenário passou a ser de consultórios fechados e médicos com celulares, computadores e tablets ligados, para ouvirem relatos de doenças e queixas de dores.
Se o coronavírus não permitiu que fossem adotadas estratégias antecipadas de enfrentamento, sobrevindo de forma inesperada, o cuidado com as doenças crônicas e outras morbidades exigiu, por parte das autoridades, a regulamentação de mecanismos antes reservados para casos pontuados de urgência, como a emissão de laudos a distância e a prestação de suporte diagnóstico ou terapêutico. São inegáveis os ganhos que a tecnologia proporciona, reduzindo distâncias e conectando, de um lado, saberes e, do outro, necessidades. Mas quero chamar a atenção para o fator insubstituível nessa equação: o viés humanista que cada discípulo de Hipócrates deve carregar dentro de si.
A medicina reúne, a um só tempo, o necessário conhecimento científico e a mais delicada capacidade de lidar com a fragilidade humana. É recompensadora a relação com as pessoas, pois todo médico já experimentou palavras de gratidão daqueles de quem cuidou, cuja melhora da saúde, cura e consolo muitas vezes promoveu, por meio da arte do saber e dessa escolha, inegavelmente, humanista.
A medicina tem como divisa uma frase atribuída a Hipócrates: “Curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre”. Durante algum tempo, a despeito de sua modernidade, a profissão do médico foi empanada por um saber cartesiano, de algum modo distante do homem, objeto de seu cuidado.
Redescobrir a frase hipocrática é uma necessidade nestes tempos pandêmicos. Se vivemos esse admirável mundo novo, expressão cunhada por Aldous Huxley, a adaptação é a melhor forma de sobrevivermos, sem nos descuidarmos do que fez com que a raça humana continuasse a dominar o planeta, uma vez que possui recursos que a diferenciam das demais espécies: somos capazes de nos enternecer com a dor alheia, de ser solidários com o drama do desconhecido. Aos médicos foi destinada a capacidade de suportarem, incólumes, o sofrimento dos doentes, para que, dessa maneira, seja oferecido um atendimento imparcial, objetivo e, ao mesmo tempo, apaziguador e acolhedor.
No coração dos profissionais da Medicina, também há dor, medo e angústia, mas, acima de tudo, esperança e confiança. Que o conhecimento e a experiência adquiridos, no decorrer das jornadas, sirvam de lenitivo a tantos quantos deles necessitem. Isso, caros leitores, as máquinas jamais substituirão. Se estivermos atentos para preservarmos o essencial, o meio jamais mudará os caros princípios que sustentam a relação médico-paciente.
Empatia e compaixão regem nossa missão. Somos aqueles capazes de, mesmo a quilômetros de separação, oferecer olhar e ouvido atentos para o paciente que busca em nós, antes mesmo da prescrição de tratamento, o acolhimento. A pandemia um dia irá acabar e as relações construídas com nossos pacientes precisarão sobreviver, seja em qual suporte for.
Natalino Salgado Filho
Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.
Publicado em O Estado do MA, em 07/11/2020
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