Palavra do Reitor
Certamente, uma das pandemias mais icônicas foi a Peste Negra na Europa dos anos 1346 e 1353, quando teve seu auge. Estima-se que, na Eurásia, morreram entre 75 e 200 milhões de pessoas. Não se tem notícia de uma pandemia tão devastadora, com impactos que duraram décadas. Entretanto, as pandemias sempre trouxeram grandes alterações sociais, apesar das consequências trágicas que carregam, na exorbitância de dores e sofrimentos; no exorbitante número de enfermos e de mortos. Tanto que não é exagero dizer que elas foram uma das mãos que moldaram nossa história, mudando a arquitetura das casas, influenciando o espaço urbano e impactando, possivelmente de forma mais intensa, o saneamento básico.
Bocaccio, que escreveu Decamerão, uma das obras literárias italianas clássicas, testemunhou o evento catastrófico e o descreveu vividamente com detalhes de um observador arguto: “Apareciam, no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou nas axilas, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs, outras como um ovo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o povo de bubões. Em seguida, o aspecto da doença começou a alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívidas nos enfermos.” A peste também gerou o enfraquecimento da mão de obra semiescrava e ajudou a desmoronar o sistema feudal, abrindo as portas para o advento de uma nova forma de organização social e econômica.
Veneza foi porta de entrada da doença, numa reincidência do surto, e lá, também, nasceu a estratégia da quarentena. A ideia foi baseada num preceito bíblico. No livro Sagrado dos cristãos, há muitas referências a quarenta dias, em várias situações. Jesus, por exemplo, esteve no deserto, em jejum, por quarenta dias. Na época da peste negra, ainda quanto à Itália, um dos países mais duramente castigados pelo coronavírus, as pessoas foram impedidas de circular, e o porto recebeu atenção especial quanto a novos visitantes.
John Snow, médico inglês, considerado o pai da epidemiologia moderna, descobriu que um surto de cólera em Londres, por volta de 1854, provinha dos poços contaminados que abasteciam as populações de determinada área da cidade. Diz-se que, na Londres do século XVIII e meados do século XIX, era preciso cuidado ao andar por certas ruas, para não ser alvejado por dejetos humanos. Paris recebeu uma das maiores intervenções urbanísticas e de saneamento daquele tempo, quando aumentou, consideravelmente, a qualidade de vida das pessoas.
A outra grande pandemia registrada pela história foi a gripe espanhola em 1918, com estimados 50 milhões de mortos. A quarentena foi, novamente, a grande arma, visto que, naquele momento, não se tinha qualquer forma de combate da doença. As consequências econômicas perduraram por anos. Apenas a título de comparação, a Primeira Guerra Mundial matou muito menos: nove milhões de pessoas nos campos de batalha. Alterações na história: essa praga acelerou o fim da guerra e favoreceu os países aliados. Houve menor escolarização nos anos seguintes, mas os estudiosos apontam para o fortalecimento do papel da mulher como profissional, e houve ainda a elevação do status social da enfermagem.
O historiador austríaco Walter Scheidel, professor da Universidade Stanford, discute como as pandemias que assolam a humanidade servem para diminuir a desigualdade. Na ótica do escritor, há o surgimento de novas oportunidades e negócios e a concentração de renda tende a diminuir. É recomendável a leitura dos historiadores Neil Howe e William Strauss que, em The Fourth Turning (A Quarta Virada), abordam o que chamam de “crises geracionais” e seus profundos impactos na sociedade. A crise ocasionada pela Covid 19, por exemplo, na perspectiva deles, serve para anteceder profundas mudanças sociais.
É bem verdade que tudo é muito recente. No Brasil, embora já existam diversas previsões acerca do futuro que nos aguarda, ainda não sabemos ao certo o que nos espera. Mas uma coisa posso asseverar: o mesmo microscópio que mostra o vírus sinaliza para as inevitáveis alterações históricas dele decorrentes. Vejo mais uma oportunidade de abrir o coração e de aprender com nossos antepassados.
Natalino Salgado Filho
Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, de Letras do MA e da AMM.
Publicado no jornal O Estado do Maranhão em 04/07/2020
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